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domingo, 19 de fevereiro de 2017

A Crise e Ternura dos Quarenta e o Peso da Solidao



Nunca a tinha sentido mas ja tinha ouvido falar tanto na mesma, sentia que nos ultimos tempos dava mais importancia aquele mito que talvez ate tivesse de facto a sua ponta de realidade.

Para os homens era tambem chamada de idade do lobo enquanto para as mulheres era denominada como a idade da loba. Havia quem lhe chamasse de Crise dos 40 mas era mesmo assim mais conhecida como a Ternura dos 40. Entendia-se bem a razao e o porque, de facto crise era uma palavra com muito menos impacto que Ternura. Pensava ele. Era a idade de se pensar na vida, naquilo que tinha ficado para tras, o passado certamente, naquilo que tinha na mao e no futuro que tinha a sua frente. Era a altura de se pensar em tanta merda pensara ele, estava a poucos dias de la chegar.

Nao considerava que estava descontente com o que havia conseguido na vida mas o que o chamara mais a atencao e comecar a recordar os mitos dessa crise ou ternura era o notar que lhe comecavam a faltar as forcas. Ja nao tinha a mesma forca que tinha aos 20 anos e sentia tambem ja alguns problemas de memoria, ja falhava ali algumas coisas por esquecimento e se agora era assim como seria quando chegasse aos 50, aos 60 e por ai a fora, isso se la chegasse.

Bom emprego, casa propria e carro com credito bancario ja pago. Que mais podia querer, que mais lhe faltava? Nao se podia queixar como tantos outros o faziam se bem que ele para ter tudo aquilo que podia olhar a sua voltar tinha tido muito trabalho.

Bebia mais um calice de Porto e pensava nos bons livros que lera, aqueles que a boa critica coberta de notas positivas o fizera ler e no fim considerara tempo perdido. Pensava nos filmes que vira e naqueles que tinha deixado de ver, era um verdadeiro cinefilo e contava-sse pelos dedos de uma mao os filmes de Polanski, de Woody Allen ou Bertolucci que nao assistira e ate voltara a assistir, ja para nao falar de Manuel de Oliveira. Gostava do que os outros faziam mas o que era nacional estava primeiro.

Tinha vontade de ouvir alguns discos que nunca ouvira mas dos quais ouvira falar bem e ate gostava de alguns musicos ou interpretes que estavam em tantos deles que tinha querido obter mas por vezes nao era facil.

Carlos Ferreira era um dos restauradores de arte e patrimonio de maior renome em Portugal e nunca pensara em fazer mais nada que nao tivesse ligado a historia e a delicada arte do restauro. Nas horas vagas gostava de ler, jogar Xadrez e tocar saxofone no JazzLive que era o clube de Musica Jazz mais conhecido de Lisboa.

Historia e restauro eram as suas paixoes mas alem dessas e da musica haviam ainda mais como a filosofia e a literatura alem daquela que tinha sido a sua maior dor de cabeca ao longo quase de quatro decadas, aquela que lhe causara mais problemas, as mulheres.

Ainda nao se sentia bem dentro dos conceitos da letra da musica My Way cantada por muitos e imortalizada por grandes vozes como a do seu idolo de sempre Frank Sinatra. Isso de arrependimentos na vida era coisa talvez para quando chegasse aos 60, 70 talvez mais cedo ou ate em casos extremos mais tarde, por fim havia tambem os que nunca se chegavam a arrepender por teimosia ou porque milagrosamente nao tinham razoes para isso. Pensou haviam alguns que nao se arrependiam de nada que tinham feito na vida porque simplesmente nao tinham tido tempo para isso, morriam de acidente, de doenca subita que muitas vezes nem tinham conhecimento ser portadores.

Sentado numa cadeira junto da mesa da cozinha enquanto preparava as torradas, cafe, sumo de laranja e ovos mexidos para o Pequeno-Almoco e via na televisao o primeiro espaco de noticias pensava na relacao quase nula que tivera com o pai, foi num desses momentos que viera o primeiro sentimento de que algo podia ter sido diferente se tambem ele tivesse feito por isso.

Nunca tinham falado abertamante na sua infancia ou ate o castigado (antes o fizesse pensava as vezes), nunca tiveram qualquer proximidade ate ele atingir a idade adulta. Fora em relacao a essa situacao que ele vira a primeira vez que tinha que tomar uma decisao, ficar do lado da mae ou do pai. Escolheu a mae porque era com a mesma que estava a ser criado e sentia que nao devia nada ao pai a nao ser a vida e o nome.

Contudo so quando a mae morrera e que viera a saber de pormenores que ate entao desconhecia. O pai estivera ausente mas nao o esquecera ao contrario do que a mae fazia ver. Era o pai que pagava a alimentacao e os estudos do filho, era o pai que o vestia e calcava e tudo mais. O pai provara-o isso ao mostrar-lhe os extractos do banco. Era entao essa a razao pela qual a mae nunca aceitara entrar em um processo em tribunal quando a aconselhavam a faze-lo, ela nao so mentia como ocultava a realidade.

Esse episodio foi quase que esquecido e a relacao futura com o pai ate a morte do mesmo foi mais afavel e proxima. Foi quando o pai morreu que sentiu que um dia seria a vez dele e teve medo da morte, de estar assim num caixao. Aquele era o homem que lhe dera a vida, o nome que mesmo ausente o sustentara e tivera todas as despesas para que nada lhe faltasse ja nao era o homem que a mae o fizera pensar ser.

O episodio passou e ja dez anos se tinham passado quando ele ali estava e pensava nisso como em tantas outras vezes pensara mas nunca com tanta intensidade como agora.

Pronto, chegara o dia em que se despedia dos trintas e recebia as boas vindas dos quarentas. Nao tinha muitos amigos ou conhecidos, nao guardava qualquer amigo de infancia ou adolescencia mas naquele dia jantava sempre com meia duzia de amigos do clube de Xadrez e com os colegas da banda onde tocava saxofone no JazzLive. Eram os poucos amigos mais chegados que sentia que tinha mas observava ao mesmo tempo que nao eram verdadeiramente intimos. Nunca nenhum deles tinha sido seu grande confidente alguma vez que fosse, amigos sim, mas de copos.

O dia do seu aniversario naquele ano comecava da mesma forma que todos os outros nos anos anteriores. Levantava-se, fazia o mesmo que nos outros dias, rotina normal como se um ritual fosse e ia trabalhar. A diferenca dos outros dias e que ia ao cemiterio e visitava as duas campas a do pai e a da mae onde colocava um ramo de flores a cada e em dose dupla ja que estavam mortos tal como os vira sempre em vida, separados, agradecia pela vida que ambos lhe tinham dado e pouco depois voltava para casa.

Em casa preparava-se para ir ter com os ditos amigos para o Jantar que ja estava marcado quase do ano anterior, era sempre assim todos os anos no fim do evento apenas dizia para o ano o importante e que ca estejamos todos outra vez e assim era.

O restaurante era diferente da tasca perto de casa onde costumava jantar quase todas as noites, fazia-o para nao se sentir sozinho embora muitas vezes era praticamente o unico cliente ali presente. Comecara com essa rotina porque como qualquer homem solteirao nao tinha vontade de chegar a casa e fazer fosse o que fosse senao por momentos trocar os sapatos por pantufas, sentar-se no sofa e por-se frente ao televisor ou a ler mais um jornal. Descobrira no entanto que por vezes o barulho dos talheres e das conversas que vinham de outras mesas eram bem melhor e mais agradavel do que o ruido do televisor com o qual nao podia dialogar. Na tasca ali ao pe de casa como cliente habitual sempre ia ganhando amizade e confianca dos donos e de alguns clientes.

O Jantar naquela noite era num sitio diferente bem mais requintado no Parque das Nacoes na zona da antiga Expo 98. Descobrira o D'Bacalhau por mero acaso num outro aniversario seu em que saira para jantar com uma antiga namorada e em que num passeio romantico se viram ali junto ao Tejo, a beira rio, chegando a hora partiram a procura de um restaurante para jantar e aquele fora o escolhido. A namorada fora-se um dia ja nao se lembrava a razao mas o restaurante ficara ponto habitual para comemorar o aniversario todos os anos.  A ideia de numa refeicao trazerem-lhe quatro pratos diferentes de bacalhau agradava-lhe e tantas vezes ali estivera como cliente que chegara a actuar como Saxofonista tambem.

Sentira-se triste durante o Jantar e sentia que comecava a sentir nao o peso da idade mas da solidao e ao certo nao sabia qual dos mesmos era pior. O peso da idade, o reumatismo e tudo isso ainda tinha remedio e cura por vezes agora a solidao era incuravel.

Incuravel nao era explicou-lhe um cliente habitual que com a idade foi ganhando alguma especie de amizade com aquele homem que tinha tanta dificuldade em fazer amigos apesar de nao ser antipatico ou antisocial. O velho conhecido explicou-lhe que aquele peso da solidao ate tinha cura, tal como tinham aquelas obras de arte centenarias que depois de sairem das maos dele estavam como novas. Aquele mal segundo o mesmo tinha cura, ele precisava era de encontrar a sua cara metade para juntar a outra parte da laranja e contemplarem uma sentimento de felicidade enorme enquanto iam mandando aquele sentimento de peso da solidao nitidamente a merda.

Arranjar companhia era essa entao a cura, sim talvez fosse verdade mas quem seria a companhia ideal? Essa definitivamente ainda nao aparecera na sua vida ja que as antigas conhecidas estavam todas casadas e segundo parecia bem casadas.

A ideia foi surgindo e ganhando forca a resposta aquela questao poderia estar em ir conhecer pessoas novas, comecar a frequentar lugares novos e ate talvez fazer uma viagem para fora de Portugal mas tinha um outro problema, muito problema e falta de tempo.

Carlos comecou a sair do trabalho e a ir beber um copo a um bar que havia ao pe da sua galeria e oficina de restauro de arte no qual nunca havia reparado e segundo as novas expressoes populares portuguesas a curtir o ambiente e a musica que por ali se ouvia. Foi-se tornando cliente habitual de todas as noites e tornou-se igualmente amigo do gerente do bar, esse, milagrosamente tornou-se mesmo amigo dele.

Valdemar tinha por aquele bar e por aquele trabalho e negocio o mesmo sentimento que Carlos tinha para o seu trabalho e negocio. Amavam aquilo que faziam e praticamente viviam para aquela sua paixao e isso que tinham em comum cada vez mais raro nos dias que corriam aproximou-os. Ambos eram igualmente homens solitarios e apesar de terem tido sucesso em quase todas as areas eram de todo homens de personalidade amargurada e triste.

O bar estava em silencio naquela noite Valdemar estava preocupado era sabado a melhor noite que podia ter durante a semana e a banda dos musicos que ia actuar e vinha de fora, um pouco ainda de longe tinha ligado a cancelar o concerto porque a carrinha que os transportava tinha tido uma avaria grave. Carlos sorriu e disse-lhe que nao se preocupasse numa questao de horas, poucas horas resolveria o seu problema. Valdemar ficou em duvida mas teve que se calar quando viu Carlos entrar em conjunto com os musicos da banda com que costumava actuar no JazzLive que por acaso e por sorte ate estava fechado para obras.

O concerto foi memoravel e durou ate madrugada para os clientes que eram mais chegados e amigos a porta fechada. Era ja altura de o sol se estar a levantar quando os ultimos se foram embora. Carlos e os colegas da banda estavam de rastos e perguntabam-se se ainda tinham idade para aquelas noitadas e loucuras.

Carlos so queria mesmo ir para casa, tomar um banho e dormir ate se cansar ou entao para continuar ali teria que beber nao umas chavenas mas baldes de um cafe bem forte. Ja todos se tinham ido embora menos ele e Valdemar que nao se cansava de agradecer a Carlos por lhe ter salvo daquela situacao e lhe ter salvo a noite, era mesmo um verdadeiro amigo.

Ia ja para casa e por morar perto nem tinha levado o carro quando aquela hora do fim da madrugada e inicio da manha se deparou com uma mulher a cambalear no meio da rua, caminhando descalca e quase despida. Pensou e bem que aquela tinha apanhado uma valente bebedeira, daquelas mesmo de caixao a cova.

Ela meteu conversa com ele e embora estivesse perdida de bebada nao se mostrara agressiva e nem escandalosa. Parecia docil, delicada, arrependida de ter chegado aquele estado e so andava por ali porque nao queria voltar para casa. Carlos como cavalheiro que era nao teve outra solucao de a levar para casa dele ainda que sem segundas intencoes apenas para a proteger se fosse outro tentaria tirar proveito da situacao e no estado em que ela estava nao seria nada dificil.

Ela tinha nome e chamava-sse Angelica quando estava ja lucida depois de ter dormido quase ate ao final da tarde pediu-lhe desculpa por todo o transtorno que lhe causara. Explicou-lhe que nunca tocara numa gota de alcool mas que na tarde anterior ao chegar a casa mais cedo e sem que o marido tivesse a espera foi apanha-lo na cama com a propria irma dela.

Angelica chorava ao contar-lhe tudo aquilo, sentia-se traida, duplamente traida e nao sabia qual a traicao lhe doia mais se a da propria irma de uma vida, se a do marido, pai dos seus filhos, companheiro de duas decadas que ela lhe julgava ser fiel e agora descobrira que ele alem de lhe meter os cornos os metia com a propria irma dela. Nao sabia o que fazer so tinha a certeza que queria avancar com a separacao e pedido de divorcio e nao queria mais voltar para casa, nunca mais. Havia apenas um problema nao tinha onde ficar e nem para onde ir?

Carlos sorriu e disse-lhe para ela ficar ali mesmo em casa dele ja que era ali que estava no momento, a casa era grande e podiam viver ali os dois perfeitamente uma vida normal sem preocupacoes para ambos.

Angelica ficou-lhe grata e comecara assim uma nova vida a casa de Carlos ganhara mais alegria e a sua vida tambem. Mesmo sem terem nada demais um com o outro era bom chegar a casa e ter alguem a sua espera, com quem conversar e tudo mais mas realmente nao tinham nenhuma relacao para alem da amizade e de serem companheiros de casa.

Com o tempo as coisas comecaram a mudar e tudo ficou diferente depois de Angelica assinar o divorcio. Anteriormente apesar de tudo era uma mulher casada mas agora era diferente e Carlos ja a tinha abordado acerca disso antes do divorcio mas ela recusara a ideia de se envolver com alguem mas agora era diferente e tambem ela sentia algo diferente por Carlos.

Era inevitavel que naquela noite dos anos dela ele nao a convidasse a irem Jantar ao D'Bacalhau e tudo podia vir a mudar depois daquela noite. Carlos quase a terminar o Jantar mas ainda antes da sobremesa tirou do bolso uma caixa que entregara a Angelina e que continha o anel de noivado ao que se seguiu o pedido de casamento ja que eram ja demasiado velhos para perder tempo com pedidos de namoro e namoros. Eram adultos, segundo ele, sabiam bem o que queriam, tinham mais era que casar o mais rapidamente possivel.

Angelina achava que ele tinha razao e ate ja sentia que o conhecia a tempo suficiente para saber que era com um homem como ele que ela queria passar o resto dos seus dias, estava em sua casa ja a mais de um ano, era tempo suficiente para sentir que podiam dar esse passo. Sairam dali, tinham tanta coisa para combinar e discutir acerca do casamento de ambos mas primeiro que tudo sentiam que tinham naquela noite, a primeira noite de amor entre ambos. Carlos por sua vez sentiu que era na verdade um quarentao em plena crise e ternura dos 40 mas que nao sentia mais... o peso da solidao.

                                                                                                        Manuel Goncalves

















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