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quinta-feira, 23 de novembro de 2017

O Passado Que Nao Se Quer Viver de Novo



Havia pessoas que por uma razao ou outra nao queriam reviver ou voltar a viver fosse o que fosse no seu passado Eugenia era uma delas e tinha ate boas razoes para nao querer voltar a viver certas coisas do seu passado. O destino era cruel por vezes e para salvar quem ela mais amava ia mesmo ter voltar a vive-lo.

Tudo o que ela fizera fora em nome dele, fora por ele e agora nao ia querer deixar de lutar para que o filho se salvasse mesmo que isso lhe viesse a custar a propria vida afinal Eugenia sabia, sabia desde o inicio em que soube que ia ter uma crianca que ela iria ser tudo para si e olhando para tras e de forma sensata pensou que ele nao tinha a culpa de como tinha sido gerado. Ele nao tinha a culpa de ter o pai que tinha e nao se podia arranjar uma mae ainda pior. O aborto era algo fora de questao, desde o inicio que o fora apesar das dificuldades que sabia que iria ter de enfrentar para criar aquele filho como mae solteira e sobretudo pelas condicoes em que tudo acontecera.

Eugenia nao tinha familia os pais tinham morrido quando ela era crianca e cansada da vida do orfanato fugia vezes sem conta. Eugenia a Rebelde passou a ser a sua alcunha em conjunto com a Eugenia que foge. Tantas eram ja as aventuras que poderia contar na inocencia dos seus quinze anos, as noites dormidas ao relento, as viagens que fizera por Portugal vagueando de Norte-a-Sul e de Sul-a-Norte e sempre o regresso ao lar ou melhor ao orfanato.

Nao gostava realmente do orfanato mas sentia que apesar de tudo ainda era ali que estavam algumas pessoas que gostavam de si, que a amavam como uma filha ou neta e a estimavam. Era inteligente e todos a incentivavam a voltar a estudar mas ela, ela, queria mais era comecar a trabalhar para se livrar de tudo aquilo, queria ser livre, independente e esquecer aquele passado que em nada a fazia sentir feliz.

Era chato ter-se amigas que so vestiam roupas de marca quando ela vestia as roupas que pessoas particulares e instituicoes de caridade doavam ao orfanato mas ela propria nao se envergonhava das suas raizes, do seu passado e historia embora nao se sentisse feliz com o mesmo nao o escondia de ninguem.

Eugenia comecara a acompanhar grupos de artistas de rua e por vezes ate actuava com eles visto a ser uma optima e talentosa Violinista e todo o dinheiro que conseguia arranjar doava ao orfanato tinha sido assim ate as ultimas semanas mas nos ultimos tempos algo estava a ficar diferente e ate mesmo Eugenia estava a ficar diferente.

A jovem preparava-se para mais uma saida do orfanato. Sabia que iria voltar mais brevemente que das outras vezes queria apenas ir ao Norte assistir a um festival de musica e como sabia que devido ao grupo que consideravam ser uma ma companhia para si nao iriam aprovar ou pelo menos ver com bons olhos essa saida temporario, Eugenia simplesmente optara pelo caminho mais facil, ir, partir sem dizer nada a ninguem e voltar quando bem entendesse tal como fizera de quase todas as outras vezes. Ja nem faziam caso no orfanto quando ela fazia situacoes semelhantes e muito menos participavam da sua fuga a Policia porque o regresso estava garantido.

Eugenia partira com alguns dos seus amigos de Lisboa com destino a terra de onde iria ser efectuado o festival, ja o tinha feito isso anteriormente mas tambem seria uma experiencia algo nova porque no grupo iriam algumas pessoas que ela nao conhecia ainda. Pensava que isso de ir conhecer pessoas novas seria uma experiencia nova, estava redondamente enganada. Como das outras vezes a maioria do pessoal do grupo eram rapazes o que ela nao sabia e que ao contrario das outras vezes a maioria eram consumidores de drogas, ja tinham problemas com a Policia e alguns ate eram ex-presidiarios.

Apesar de tudo Eugenia nunca tinha fumado qualquer droga que fosse e nunca tivera um namorado, tambem se vestia de uma maneira mais discreta embora nao escondesse um pouco o seu Hippie style que ela tanto admirava e elogiava. Adorava as roupas coloridas e comecou por sentir-se mal no meio de toda aquela gente que se vestia na maioria de negro mais ao estilo gotico.

A maioria insistia para que ela entrasse na onda deles comecasse a fumar uns charros e a apanhar umas pedradas e ganzas ou que pelo menos bebesse umas cervejas. Os amigos mais chegados e conhecidos respeitavam as ideias e decisoes dela agora aqueles que ela menos conhecia nao iam em conversas e afastavam a mesma de certos acontecimentos que o grupo realizava.

Nao a iam deixar tocar, essa noticia foi o ponto final. Ela nao tinha ido para ali apenas para se divertir e estar no meio da audiencia, ela nao estava ali apenas para ouvir musica. Era injusto e o mais correcto que podia fazer era agarrar nas suas coisas e partir para Lisboa, era isso que iria fazer no dia seguinte porque era ja tarde.

Fora para um canto isolar-se dos restantes queria, apetecia-lhe chorar sem que os outros a vissem mas nem conseguira notar que estava a ser seguida nao por um mas por um grupo que embora fossem varios conseguiram segui-la sem que ela se apercebesse do mesmo o que nao deixava de ser perigoso para ela.

O que se seguiu foi algo que mudara para sempre a vida de Eugenia. Nao era um, nem dois, muito menos tres mas cinco os elementos do grupo que a agarraram e silenciaram pondo-lhe um lenco na boca e rasgaram-lhe as roupa, depois de despida comecaram as violacoes.

Eugenia so se lembrara de tudo na perfeicao ate ao terceiro dos cinco elementos comecar a sua violacao recusando-se inicialmente a faze-lo mas quase forcado pelos companheiro que comecaram a por em causa a sua mascunilidade ve-lo fora mais brando que os outros, nao fora agressivo e depois dele Eugenia perdera os sentidos. Aquele era igualmente o unico que a mesma conseguiria descrever e fora o unico que lhe pedira desculpa no fim quando ela estava ja a ficar sem sentidos. Nao se recordava de mais nada, talvez fosse melhor assim porque sentira apenas parte do sofrimento.

Fora encontrada ainda sem sentidos na manha seguinte e com vida num estado lastimavel e que nao deixava duvidas daquilo que acontecera e logo fora levada para o hospital. Alem dos exames forenses necessarios e acompanhamento psicologico Eugenia tivera o acompanhamento policial de inicio para a proteger e para comecarem as investigacoes logo que possivel.

Voltara ao orfanato logo que pode e queria fazer uma vida normal como se nada fosse, parecia que tinha mudado e que aprendera uma grande licao. Queria voltar a estudar e formar-se numa area da Sociologia que permitisse trabalhar com vitimas de violacoes como ela fora. Queria voltar a ter uma vida normal mas nao conseguia. A Policia queria seguir as investigacoes, o caso tornara-se publico e de nivel nacional os jornalistas nao a largavam e queriam dar enorme destaque ao que tinha acontecido consigo. Ela queria, so queria esquecer tudo, queria continuar a viver mas algo comecara-a a preocupar.

Eugenia ao fim de um mes e pouco admitira finalmente que estava gravida e o fruto da mesma gravidez so podia ser originario da violacao que sofrera a semanas atras. A jovem estava mais madura e sobrevivera ao trauma como uma verdadeira heroina, quase que como se nada fosse. Tinha ja decidido voltar a estudar terminar de vez o ensino secundario e avancar para o ensino superior e decidira ali naquele momento que nao ia querer quem era o pai daquela crianca mas que iria querer te-la somente para si.

Enquanto a Policia acabara por apanhar todos os violadores com a ajuda de um dos mesmos que se arrependera, o tal que nem queria cometer inicialmente a violacao. Fora ele mesmo a ir entregar-se confessar o crime e entregar os restantes comparsas. Se nao fosse o mesmo nao teria sido tao facil apanhar todos os violadores e a propria defesa de Eugenia em Tribunal era baseada na confissao de Tome, o tal violador confesso e arrependido.

Eugenia voltara a ser noticia a nivel nacional quando a sua gravidez foi conhecida publicamente. Havia mesmo quem pensasse em tornar o seu drama em filme. Nao paravam de chegar as palavras de coragem, de conforto e as ajudas financeiras inclusive uma marca de produtos para bebe assegurava-lhe toda a alimentacao do filho para os tres primeiros anos assim como outros lhe davam trabalho e ate havia quem lhe quisesse oferecer uma bolsa de estudo.

Era dificil mas estava frente a frente com os violadores em tribunal. O que confessara e demostrara arrependido alem de ter ajudado as autoridades chegara a dirigir-se a ela e a pedir-lhe perdao. Ela nao queria acreditar que alguem tao docil e delicado, alguem com um personalidade tao correcta e justa pudesse ter feito o que fez, ele justificou o mesmo com o uso de drogas e bebidas mas nao queria que isso servisse de desculpa.

A sentenca final fora o que se esperara Tome por mostrar arrependimento e ter colaborado com a justica apanhara uma condenacao de cinco anos enquanto os restantes acabaram por ser condenados a oito anos. Nem a televisao faltara ao acontecimento mas mais uma vez Eugenia recusara a prestar declaracoes publicamente, optara pelo anonimato e apenas pedira ao seu Advogado para comunicar aos orgaos de comunicacao social de que ela estava feliz com a sentenca e que recusava a ideia de se fazer exames de DNA a todos os condenados para se saber quem era o pai da crianca que ela trazia na barriga no setimo mes de gravidez ja. Eugenia preferira que o filho nao soubesse, que ela nao soubesse e que nem ninguem soubesse quem era o pai do filho.

Nao achava que isso fosse util para uma crianca saber que o pai alem de criminoso, violador e tudo mais era um presidiario ou ex-presidiario. Eugenia inclusive achava preferivel que a sua honra e dignidade fossem postas em causa. Como ainda eram na sociedade em que vivia sobretudo naquele meio tao pequeno e ate isolado. Estava decidida ia voltar a estudar, formar-se e depois ia com o filho viver para Lisboa.

Os anos passaram e tudo correu como ela planeara. Eugenia naqueles dez anos formara-se em Sociologia e era Assistente Social numa Instituicao de apoio a vitimas de violacoes, era o que ela tinha sonhado depois da noite mais dura da sua vida. Vivia num apartamento em Lisboa perto da instituicao e da escola onde Gabriel o filho estudava. Tudo corria normalmente e dentro do esperado a unica coisa que inicialmente esperava era Tome a procurar depois de cumprir pena e sair da cadeia.

Mais uma vez Tome pedira-lhe perdao e foi nascendo uma amizade. Ele violara-a era certo embora ao que mostrara no momento contra a sua vontade mas violara-a. Apesar dele mostrar todo o arrependimento que ela ate acreditava ser sincero, apesar dele ter sido uma ajuda e chave fundamental para todos os seus violadores terem sido apanhados, julgados e condenados ela sempre fora um pouco fria com ele, evitando muitos contactos mas tendo-o perdoado de facto.

Gabriel estava doente e isso preocuva Eugenia, ele era, o seu mundo, o seu centro de atencoes e tudo faria por ele. Por aquele filho Eugenia daria a vida para o salvar mas a realidade que o futuro lhe iria mostrar nao era bem assim, a sua vontade nao seria o suficiente. Eugenia podia ate dar a vida por aquele filho mas mesmo que desse nao o iria conseguir salvar.

Estava no hospital a espera que a chamassem Gabriel tinha sido levado a mais de duas horas pela equipa dos medicos que o estavam a examinar sem lhe trazerem noticias. Era doloroso demais, dera por si a pensar que seria dela sem a sua razao de viver, a sua maior felicidade e... os medicos chamaram-na e pela cara o assunto parecia serio.

Gabriel tinha leucemia e precisava urgentemente de um transplante se a mesma nao fosse compativel ter-se-ia que saber quem era o pai para ver se o mesmo era e em caso do mesmo nao ser a solucao era para um transplante de medula seria o banco mundial de doadores mas a hipotese seria por vezes muito remota, em um milhao talvez um fosse compativel e talvez nem isso. Ultima solucao seria os pais, ela portanto, e um dos homens que a violara naquela noite do festival terem um filho em comum que viesse a ser irmao de sangue de Gabriel e compativel com o mesmo.

Estava desesperada isso tudo seria faze-la voltar ao passado que ela nao queria viver de novo. Qual dos cinco homens que a violaram seria o pai de Gabriel? Como iria era olha-lo e confronta-lo, dizer-lhe e explicar-lhe que tinham de ter outro filho em comum para salvar a vida daquele que ja tinham ali a morrer?

Podia estar a fazer uma tempestade num copo de agua, ela podia ser compativel e tudo estaria resolvido, mas podia nao ser. Certo, Eugenia ja sabia disso e que nem que desse a vida ia poder salvar aquele filho, ironico demais para ela que sempre dizera que pelo filho, pela vida do filho dava a sua se fosse preciso.

Foi ve-lo e nunca o imaginou naquele estado, fragil, abatido, rodeado de maquinas e aparelhos, deitado naquela cama de hospital, ele que era uma crianca tao irrequieta e hiperactivo, cheio de energia. Estava ali quase a morrer e ela nada podia fazer senao o que ja tinha feito.

Eugenia fizera logo os exames para se constar se ela era compativel com o filho mas para seu desgosto, nao era. O exame que havia sido feito a Guilherme revelava igualmente que as probabilidades de o pai ser compativel com ele eram muitos maiores ja que ele herdara muitos dos seus dados geneticos.

Como por magia Tome estava ali ao seu lado, viera desde logo que soube o que se estava a passar e olharam-se nos olhos com o mesmo pensamento como se estivessem a usar telepatia. As hipoteses no fundo eram de vinte por cento, Tome podia ser o pai de Guilherme e tudo podia ficar por ali mas eram apenas 20 por cento de probabilidades e isso inicialmente era pouco mas era de facto alguma coisa, era um comeco como dizera Tome inicialmente.

Os exames estavam feitos faltava saber o resultado dos testes e Eugenia pensava que se o mesmos testes demostrassem que havia compatibilidade jamais iria ser necessario fazer-se um teste de paternidade para se saber quem era o pai de Guilherme, era preferira nunca vir a sabe-lo, toda a vida tinha optado por essa decisao, o filho tinha o direito de saber quem era o pai mas nao tinham o direito de lhe dizer que o pai era um criminoso que violara a mae e a engravidara.

Eugenia deu por si a caminho de uma igreja, queria rezar. Para seu espanto nao esperava la encontrar era Tome que estava a fazer o mesmo que ela e possivelmente a rezar pelos mesmos motivos. Falaram ja no fim, Tome convidara-a para irem tomar um cafe ate ao centro comercial ali proximo.

A jovem sempre tivera a curiosidade de lhe fazer a pergunta, o que o fizera mudar, ou arrepender-se? Ganhara coragem para o fazer finalmente.

Tome contou-lhe um pouco o que fora a sua vida de uma forma breve e revelara-lhe que ele nunca a quisera violar mas fora nao so forcado pelos outros a faze-lo nao so para mostrar que era homem mas tambem porque o tinham obrigado a faze-lo, afirmando que acabavam ali com ele se nao o fizesse. Contou-lhe em breves instantes o que fora a sua vida na cadeia e que todas as noites orava, orava mas nunca por ele, pedia perdao a Deus pelo que tinha feito mas nunca pedira uma vida melhor, pedira a Deus que protegesse aquela mae e aquela crianca. Agora na igreja rezava nao apenas para a mesma se viesse a salvar mas para que ele, ele Tome, fosse o pai daquela crianca, nao apenas para ela se poder salvar mas porque ele queria que Guilherme fosse seu filho.

Eugenia tinha as lagrimas a correr pelo rosto ao ouvir o testemunho emotivo de Tome. Sentira que naquele homem por Guilherme estava um amor paternal da mesma forma que ela sentia pelo seu filho um amor maternal, era algo mistico talvez mas ela tinha a certeza agora que Tome tinha tudo para ser o pai de Guilherme.

O resultado dos testes para alegria de todos revelava compatibilidade entre Tome e Guilherme e isso nao dava apenas a certeza de que Tome podia salvar Guilherme mas certamente era seu pai. Nao havia portanto tempo a perder e ainda naquele dia se preparou tudo para efectuar o transplante que veio a ser um sucesso.

A historia emocionara a todos mais uma vez e o caso viera a publico e todos julgavam que a vida as vezes era como nos contos de fadas tudo estava bem quando acabava dessa forma, ou seja, quando acabava bem.

Tome era um homem diferente desde que terminara de cumprir a sua pena, tinha voltado a estudar, tirara um curso e trabalhava, ia fazendo pela vida. O filho era agora tudo para ele e todos os finais de tarde corria no carro para o ir buscar a escola, todos os dias fazia o possivel por conquistar o coracao de Eugenia e isso estava cada vez mais perto de acontecer. Sonhava vir a ser feliz com ela e com o filho, os tres juntos tinham que ser uma familia. Tome amava o filho assim como amava Eugenia.

                                                                                                             Manuel Goncalves













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