Página

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Aprendendo a Viver

 

Nao era facil deixar para tras tudo o que tinha e esquecer tudo o que vivera ate entao. Ela estava disposta a faze-lo, para ser feliz e para ser alguem na vida ela estava disposta a faze-lo. Mesmo que o preco fosse deixar na terra, ali na provincia a familia e todos amigos para partir para Lisboa em busca de uma nova vida, novo destino, entrar em uma nova realidade.

Estava cansada daquela vida em que passavam dias e dias e nada de novo vivera, nada de novo tinha para contar. O pior era agora o namorado que partira para Franca a mais de um ano aparecer de novo na terra depois de alguns meses sem lhe enviar uma carta, casado com uma francesa rica, com um bom carro, bem vestido e nem procurar dar-lhe uma justificacao. Parecia que nem a conhecia, parecia que nada houvera entre eles.

Depois do choque, da recaida, depressao que comecara com uma enorme humilhacao era altura de refazer a vida. Tinha poucos estudos e as oportunidades de trabalho ali na aldeia nao eram quase nenhumas e mesmo na cidade mais proxima eram bem menos do que haviam sido no passado e quase todas passavam pelo trabalho de Domestica.

O anuncio que lera no Jornal aparecera no momento certo e ela depois de telefonar a pedir informacoes e de responder positivamente aos primeiros requesitos foi-lhe dada a oportunidade de ir a uma entrevista a Lisboa para responder directamente a esse emprego.

O anuncio pedia uma Senhora, jovem ou ja adulta para ser Empregada Domestica Interna em Casa de Senhora Viuva da alta sociedade. Para Camila agradou-lhe a ideia porque a partida ja ia ter onde viver, dormir, possivelmente comer, praticamente nao iria precisar de tocar no seu ordenado por aquilo que a mesma pensara a primeira vista.

Seguia agora para Lisboa ainda madrugada no comboio levando apenas uma mala e o farnel que a Mae lhe prepara. Ainda nao sabia se o emprego ia ser seu, ia so agora responder a vaga do mesmo mas so pelo facto de ir conhecer, ver finalmente o que era Lisboa ja a fazia sentir se feliz consigo propria, mesmo que tudo falhasse, mesmo que nao desse certo ja tinha realizado um desejo antigo, ir a Lisboa, conhecer Lisboa.

Sentia que seria uma mudanca radical para a qual nao estaria preparada em todos os sentidos. Deixaria de ver carrocas e passaria a ver carros. Talvez nao estivesse completamente preparada para aquilo que a esperava, talvez ate iria passar por experiencia e mudancas que nao lhe iriam agradar mas era o que ela de facto mais queria era chegar a Lisboa.

O comboio partira de madrugada e ela chegara ate ao mesmo depois de apanhar a camioneta que fazia a carreira entre a aldeia e a cidade de onde o bendito comboio parara para uns entrarem e outros sairem. Era mesmo assim a partida de uns era a chegada de outros.

Aquilo parecia-lhe desconfortavel ja que os bancos eram de madeira, havia mais passageiros que lugares disponiveis, alguns viajavam de pe e outros alheios a tudo somente queriam dormir, ou pelo menos, descansar um pouco.

Era ja dia quando ela conseguira dormir ou melhor "dormitar" um pouco e pouco depois de acordar o comboio parara e fora-lhe anunciado pelos autofalantes da estacao que o comboio chegara ao seu destino final. Finalmente Camila, a Camilinha como quase todos lhe chamavam la na terra ate entao, estava finalmente em Lisboa.

Logo sentira que era outra vida, outro mundo, agradava-lhe tudo o que estava a ver mas era como se sentisse que aquele mundo nao era o seu, nao lhe pertencia, mas ao qual era queria pertencer, queria aprender a viver e a estar naquele novo mundo.

Cruzara-se com uma verdadeiramente multidao desde que saira do comboio ate chegar a saida da estacao. Ninguem lhe sorrira como era habito la na terra quando a viam de manha chegar a padaria e mercearia. Muitos menos ninguem lhe desejara bom dia como era tradicao quando se cruzava com as pessoas na aldeia que lhe eram mais intimas e conhecidas. Ninguem a chamara para terem dois dedos de conversa, ouvir ou contar as novidades.

O ruido dos carros, buzinoes, apitadelas tudo lhe era estranho e de facto nao lhe agradara. O grito de pregoes das peixeiras, dos vendedores de jornais, o olhar maldisposto de alguns, a furia de outros, a ignorancia, desprezo das pessoas que passavam por si. O Policia que procurava orientar o transito, o cheiro que vinha dos cafes cheios que nem ovos. Eram coisas as quais ela nao estava habituada mas que de facto com o dia-a-dia teria de ir aprendendo a viver. Agora era mesmo assim.

Apos perguntar a alguem la lhe explicaram como haveria de chegar aquele lugar, a morada que a mesma tinha escrita num papel e ficou logo a saber que chamando um Taxi para ir de Santa Apolonia para Belem o mesmo lhe ia custar uma pequena fortuna. seria bem melhor a menina ir  de autocarro explicara-lhe o senhor que lhe dera as informacoes que com ela nao se apercebendo da malicia do mesmo lhe parecia querer comer com os olhos.

Finalmente depois de apanhar o 17 e o 22 chegara ao seu destino sem mesmo saber que se tivesse apanhado o 35 o trajecto seria directo sem ter que trocar de autocarro no Cais do Sobre para ir para Belem.

Estava em Belem ficara encantada com a beleza do rio que parecia querer abracar a cidade tal como la ao fundo aquela estatua gigante de bracos abertos parecia querer abracar tudo ao seu redor, inclusive a ela propia. Tudo lhe parecia um sonho do qual ela nao queria acordar, tudo lhe parecia um sonho em comparacao a vida da aldeia, ja la bem longe na provincia, mas ela sabia melhor que ninguem que aquela podia ser a sua nova realidade, iria se-lo se ela conseguisse segurar aquela vaga de emprego, queria agarra-la com unhas e dentes, estava disposta a tudo para a conseguir, menos mentir.

Chegara a um bairro de vivendas grandes e luxuosas, aquele bairro parecia ser maior que a sua aldeia e Lisboa entao podia ser do tamanho do mundo. Parara no numero que lhe haviam indicado e tinha a certeza de que a rua era aquela, a morada estava certa e existia mesmo, respirara de alivio. Na terra tinham-lhe dito e avisado que podia ser tudo um esquema e a morada nem existir, falaram-lhe que podia ser um golpe para depois mesmo contra a sua vontade a lancarem na prostituicao.

Vieram-lhe abrir a porta pouco depois de ela ter tocado a campainha, olhara ao seu redor e nunca tinha visto nada assim ao vivo. Uma casa com piscina, um carro lindo, so nao gostaria da cor, um jardim enorme e muito bem cuidado. A casa tinha divisoes enormes e so a casa de banho lhe parecia ser do tamanho da casa dos seus pais la na provincia. Os seus pais como estariam agora os seus pais? A sua Mae, a quem ela jurara escrever semanalmente sem falta caso ficasse ja por Lisboa.

A dona da casa, sua possivel futura patroa olhara-a e explicara-lhe tudo o que achara necessario, fez-lhe algumas perguntas que considerara essenciais e importante e pediu-lhe que se despisse para ver como lhe ficara o uniforme. Camila nunca se despira na frente de ninguem, nunca ninguem a vira como Deus a fizera vir ao mundo apos chegar ao fim da infancia e entrar na adolescencia e muito menos ainda ja na idade adulta. Namorados para la dos beijos a unica caricia que consentira e apenas por uma vez foi que um uma vez lhe apalpasse os seios, e somente por cima da roupa.

Camila segurara o uniforme e levantara-se, pediu autorizacao a dona da casa para ir-se mudar na casa de banho mas ficara pasmada apos a mesma negar-lhe a autorizacao e ordenar-lhe que ela se mudasse ali no escritorio e a sua frente. Quando a mesma ficara pensativa a dona da casa garantiu-lhe que se ela o fizesse com toda a certeza a vaga de emprego seria sua.

Nao foi preciso aquela que agora era sua Patroa repetir a mesma coisa duas vezes e a partir daquele momento estava crescendo uma relacao de Empregada e Patroa que por vezes se podia dizer uma relacao de amigas. Camila por vezes via a Dona Beatriz como uma Mae e sabia que a mesma a tinha ja como uma filha.

Camila inicialmente pensara que iria encontrar uma mulher cheia de manias, uma velha chata cheia de requintes e dificil de aturar. Cedo vira que estava enganada. Dona Beatriz era uma mulher ate bastante humilde e que gostava muito de conversar com ela, a senhora ate era por vezes, quando o tempo lhe permitia, de lhe dar uma ajuda no servico da casa onde so viviam mesmo elas as duas e as unicos que trabalhavam ali e vinham de fora era o Jardineiro e o Motorista.

Dona Beatriz era uma mulher de cinquenta e poucos anos que ficara viuva ainda antes dos quarenta e nao voltara a casar. Nao tivera filhos e tinha poucos familiares, os que tinha estavam longe e poucas vezes a visitavam, quando o faziam habitualmente era para pedirem ajuda a tia, a prima rica. Beatriz era uma mulher solitaria e a solidao ajudara-a a escrever e a tornar-se uma Escritora famosa. Camila e outras empregadas que tivera no passado acabavam por ser a sua companhia mais proxima tirando isso so algumas amigas que a visitavam quase que uma ou duas vezes por semana para um chazinho no final da tarde. Estava encantada com Camilia era sem duvida a melhor empregada que tivera ate entao, muito prestavel e eficiente, tinha-a como sendo sua filha e ja pensava em alterar o seu testamento. 

Camila achava curioso e estranhava porque razao se a casa tinha mais quartos vazios as amigas da patroa dormiam com a mesma quando depois dos finais de tarde com um chazinho ficavam para Jantar e dormiam la por casa com a patroa.

A Partroa estava sempre a arranjar maneira de pagar mais do que aquilo que estava combinado a Empregada. Comprava-lhe vestidos, sapatos, roupas de marcas caras, chegara-a a presentear com joais e perfumes importados. Chegava a leva-la ao Teatro e a Jantar fora. Camila tinha uma vida como nunca imaginara vir a ter e todos a viam mais e melhor filha de Dona Beatriz do que como Empregada.

A jovem com ajuda da Patroa voltara a estudar e vai-se la saber porque Dona Beatriz meteu-a a tirar a carta de conducao. Camila mesmo sabendo que estava acordada e que aquela era a realidade sentia que tudo aquilo era um sonho. Tinha uma vida luxuosa como nunca imaginara e nem precisava tocar num tostao do seu ordenado, gracas a isso ja tinha uma boa quantia na sua conta bancaria.

Dona Beatriz criara muitos planos para o futuro de Camila e quisera que a mesma voltasse a estudar para que ficasse com estudos e conhecimentos para um dia ser o seu braco direito nas empresas. O aniversario da jovem estava a chegar e ela ainda nao conseguira decidir a marca e modelo de carro que lhe havia de oferecer como presente de aniversario... era essa a razao pela qual Beatriz fizera tanta questao que Camila fosse tirar a carta de conducao.

Comecara a sentir uma sensacao estranha, um sentimento que nunca sentira, Camila nao sabia explicar o que se passava com ela mas parecia comecar a sentir algo novo de algum tempo para ca por Dona Beatriz que tantas vezes ja nem chamava de Dona. Comparava essa nova sensacao e sentimento que tinha pela Senhora Beatriz com o sentimento que um dia sentira pelo ex-namorado.

O grande dia de Camila chegara e mesmo no dia anterior tinha terminado de tirar a carta de conducao. Ela e Beatriz jantaram as duas num restaurante a beira rio mesmo ali no interior do Parque das Nacoes. Dividiram uma Mista de Bacalhau para duas pessoas que era composta por quatro pratos de bacalhau e Camila com insistencia de Beatriz consumira alcool pela primeira vez na vida, estava bastante alegre e tocada pela bebida.

Beatriz considerou que ela estava no ponto e que se nao fosse naquela noite talvez nao fosse nunca. A Patroa desde a muito que estava apaixonada, perdidamente apaixonada, loucamente apaixonada pela Empregada e tudo fizera que a mesma sentisse o mesmo por si. Sentia que a mesma nao lhe era indiferente mas demasiado timida e ingenua para o assumir e admitir, talvez tambem fosse por vergonha. Camila era uma rapariga da provincia que estava em Lisboa a pouco mais de um ano, sim, ja se tinha passado um ano desde que as duas estavam juntas.

Voltaram para casa e meteram-se a conversa no sofa. Beatriz ia-se chegando cada vez mais perto de Camila e a mesma nao se afastava, nao recuava, somente sorria, estava pasmada e esperava pelo proximo passo da amada. Sim fazia ja muito tempo que ela tambem amava a Patroa e nao o assumia por vergonha.

Foi como uma erupcao vulcanica quando finalmente os labios de ambas se tocaram, as maos passavam pelo corpo uma da outra. Camila estava ofecante:

- Querida, vamos com calma! Creio que devemos ir para o quarto, creio que nunca fizeste nada disto?
- Nao Dona... - Beatriz colocou-lhe um dedo no labio pedindo-lhe silencio.
- Sim ja tinha a certeza de que nunca tinhas estado com uma mulher, relaxa, vamos para o quarto.
- Nao, nunca estive com uma mulher. Nem com mulher nem com homem. Queira a senhora saber que nunca estive com ninguem.
- Com ninguem! Rapariga es virgem?
- Sim minha Senhora sou mas o que tenho estado a sentir e algo que nunca senti, siga em frente tem a minha permissao de me fazer tudo o que quiser. E uma sensacao tao boa que nao consigo descrever. Nao sei se e errado, se e certo mas e com a Senhora que eu quero que seja a minha primeira vez.

Seguiram para o quarto, aquela cama, aquele quarto, aquele cenario Beatriz pensara Camila havia pensado em tudo, amava-a.

O que se seguiu foi uma mistura de sentimentos com o que era certo e errado. Camila ja nao se sentia preocupada com o que as pessoas pensavam, com julgamentos. Alem do mais ela estava ali e a familia estava na provincia. Beatriz como agora lhe chamava fazia-a sentir-se a mulher mais feliz do mundo. Beatriz era ainda a Dona mas ja nao a Dona Beatriz mas sim a Dona do seu coracao. Iam agora de ferias ate Paris gozando a sua Lua-de-Mel apos se terem casado as duas porque agora tudo era ja aceitavel e vergonha era nao assumir o que se sentia. 

Ela Camila tivera um longo processo pela frente desde o momento da sua chegada a Lisboa ate aquele momento que agora vivia e sentia que o que sentia por Beatriz fora o destino que lhe ditara e o resto foi algo com que foi... aprendendo a viver.

                                                                                                                    Manuel Goncalves

Sem comentários:

Enviar um comentário